«Uma filosofia que não inclua a possibilidade de fazer adivinhações com grãos de café e não consiga explicar isso, não pode ser uma verdadeira filosofia» (G. Scholem) |
Narciso e o Espelho. Virtualidade e Heteronímia ou as viagens pessoanas de Alice
[a 1ª versão deste texto serviu de base à comunicação ao II Lusocom: Encontro Lusófono de Ciências da Comunicação, promovido pela SOPCOM: e INTERCOM, que se realizou na Universidade Federal de Sergipe (Brasil), entre os dias 28 e 30 de Abril (em 29 de Abril de 1998. Publicado em em Hermes ou a Experiência da Mediação (Comunicação, Cultura e Tecnologias), Lisboa, Pedra de Roseta, 2004, pp.90-105]
O espelho reflecte a direita exactamente onde está a direita e a esquerda onde está a esquerda. É o observador (ingénuo, mesmo quando faz de físico) que por identificação imagina que é o homem dentro do espelho e, vendo-se, se dá conta de que traz, por exemplo, o relógio no pulso direito. Mas o facto é que só o traria se ele, o observador, fosse aquele que está dentro do espelho (Je est un autre?). Quem, no entanto, evitar comportar-se como a Alice e não penetrar dentro do espelho, não cairá nessa ilusão.
U. Eco, Sobre os espelhos e outros ensaios, Lisboa, Difel, 1989, p.15
A filosofia é a teoria das multiplicidades. Toda a multiplicidade implica elementos actuais e elementos virtuais. Não há objecto que seja puramente actual. Todo o actual se envolve por um nevoeiro de imagens virtuais. Esse nevoeiro levanta-se de circuitos coexistentes, mais ou menos extensos, sobre os quais as imagens virtuais se distribuem e correm. É desta forma que uma partícula actual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos, de diferentes ordens. (…) Dada a identidade dramática dos dinamismos, uma percepção é como uma partícula: uma percepção actual envolve-se de uma nebulosidade de imagens virtuais que se distribuem sobre circuitos em movimento, cada vez mais afastados, cada vez mais largos, que se fazem e que se desfazem. São recordações de diversas ordens: são ditas imagens virtuais na medida em que a sua velocidade ou a sua brevidade as disponha aqui sob um princípio de inconsciência.
Deleuze, «O actual e o virtual», (1ª Parte)
…Houve até muitas pessoas que se afogaram num espelho…
Ramon Gomez de la Serna, Gustave l'incongru,
p. 23 (citado por Bachelard)
§ 1. A primeira vez em que, na história do pensamento Ocidental, se colocou o problema das fronteiras entre o «real» e o «virtual» foi, sem dúvida, seguindo a descrição de Ovídio nas suas Metamofoses , quando Narciso se contemplou nas águas secretas do seu próprio reflexo, situadas no fundo dos bosques, deixando-se seduzir, narcótica e etnocentricamente (não nos esqueçamos que, etimologicamente, Narciso provém de narké, donde deriva narcose/narcótico, ajudando a explicar, por exemplo, a relação desta flor com os cultos infernais e as cerimónias de iniciação aos cultos a Deméter, ritualizados em Elêusis), pelo Outro-de-si, sucumbindo à metamorfose na flor que leva o seu próprio nome. A importância deste acontecimento pode ser visto a vários níveis, de que destacaremos apenas dois, interdependentes: o duplo desenvolvimento de uma «fenomenologia do espelho» (em que o rosto humano desempenha o instrumento de sedução) e, implicitamente, de toda uma «hermenêutica teorética», que o mesmo será dizer, de uma «ciência comunicativa do Ver» .
Em qualquer dos casos, o mito de Narciso remete-nos para os paradigmas do espelho, do olhar e da luz, tudo metáforas essenciais à estrutura da experiência teorética, metáforas essas tão antigas quanto a própria tradição do pensamento (Ocidental e Oriental). Esses paradigmas, enquanto associados à categoria da Visibilidade e, por arrasto, à própria faculdade imaginativa, não deixam de ser, hoje, categorias a salvar, como muito bem o constatou, por exemplo, Italo Calvino quando escreveu:
Se incluí a Visibilidade na minha lista de valores a salvar é para advertir do perigo que corremos de perder uma faculdade humana fundamental: o poder de focar visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas a partir de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros numa página branca, de pensar por imagens
Actualmente, esta estratégia de associação do narcisismo à figura do espelho foi alargada à própria definição da cultura-vídeo, tomando-se como pressuposto que (inversamente ao que se passa com a televisão em que se visualiza - mesmo que em «zapping» - imagens globais do mundo externo) estamos perante a imagem do eu, o espelho da alma e «a porta de entrada para uma verdade interior» (Perniola). Como escreve Mario Perniola na sua obra acima citada,
Se a televisão oferece a imagem do mundo externo, o vídeo proporciona- nos a imagem do eu: tratar-se-á de uma espécie de confessionário, através do qual o autor se confronta directamente com o espectador.
Num excelente ensaio psico-fenomenológico sobre a imaginação da matéria, Bachelard tipifica as várias formas de «narcisismo» por relação com uma poética das águas e uma psicologia do espelho . No entanto, este narcisismo, incluindo o tipificado pelo próprio Bachelard, tem sido interpretado ao contrário pois, inversamente às conclusões hermenêuticas extraídas do mito, no narcisismo não estamos perante um excesso de egoidade e de «amor por si» (Narciso não tinha consciência que aquela imagem — seu duplo — era a do seu rosto), mas antes uma total negação da própria identidade e dissolução subjectiva no Outro-de- si. Ou seja, em termos psicanalíticos, diríamos que, no mito de Narciso, se dá a total transferência libidinal para o objecto reflectido (re(a)presentação) em detrimento da «flexão» (apresentação), isto é, do modelo que suporta o eu real.