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Camões/Pessoa: Poetas da Viagem Utópica

[texto-base da comunicação ao I Encontro das Caldas da Rainha ,: José da Costa Miranda (org.), 1498-1998 Gama, Camões, Vieira, Pessoa A Gesta e os Poemas, a profecia, Caldas da Rainha, Livraria Nova Galáxia, 1999,  pp.153-165]

 

 Dizer que Os Lusíadas representam uma viagem é óbvio ao ponto do irrelevante. Mas talvez já não seja tão óbvio, nem terá sido suficientemente acentuado, qual a natureza simbólica da viagem que a obra representa.

 
Helder Macedo

 

Criando uma civilização espiritual subjugaremos todos os povos, porque contra as forças e as artes do espírito não há resistência possível, sobretudo se estão bem organizadas, fortalecidas por almas de generais do Espírito.

 Fernando Pessoa

 

A vida é uma viagem, experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espirito através da matéria, e, como é o espírito que viaja, é nele que se vive.

 

 Bernardo Soares

 I

                         Em primeiro lugar, não posso deixar de agradecer o honroso convite que me foi feito pelo Professor Doutor Costa Miranda para participar nestes I Encontros Culturais das Caldas da Rainha.

            A proposta que me foi feita foi a de relacionar as obras de Camões e de Pessoa e a minha sugestão é o de tecer uma breve reflexão em torno da temática da «viagem utópica»

II

             Sempre que se fala de um qualquer pensamento utópico fala-se, implicitamente, de um caminho que leve a ele, isto é, de uma viagem (experimental) que conduza à sua realização.

 

             Nos finais dos anos 70 e início dos 80, teve lugar na Universidade Nova um Seminário, orientado por Yvette Kace Centeno, sobre «A Viagem e as Viagens». Dos trabalhos aí realizados foi publicado, inicialmente, um volume com quatro estudos subordinados ao tema de A viagem de «Os Lusíadas»: Símbolo e Mito (organizado por Yvette Kace Centeno e Stephen Reckert, Lisboa, Arcádia, col. Artes e Letras) e, posteriormente, um outro, na mesma colecção, intitulado A viagem «entre o real e o imaginário» (Lisboa, Arcádia, 1983). Helder Macedo, um dos participantes deste Seminário, publicou parte da sua colaboração, combinando-a com uma outra comunicação que proferiu no colóquio internacional sobre Camões e a Civilização do Renascimento, organizado no Centro Cultural Português de Paris por José Pina Martins em Outubro de 1980 — na segunda parte do seu livro Camões e a viagem iniciática (Lisboa, Moraes editores, 1980, pp. 33-59). Ainda como nota bibliográfica, será de referir que também é nessa altura que sai a público o livro de Jacinto do Prado Coelho Camões e Pessoa: Poetas da Utopia (Lisboa, Publicações Europa América, 1983).

 
 

 
            A Mensagem deverá ser vista no entrecruzar de três pontos de vista interdependentes, a saber:

 

·         Como o ponto de fuga ourobórico do processo heteronímico, que tem por diário de bordo o Livro do Desassossego, no qual se dá a operatividade (alquímica-verbal) do homo criator;

 

·         Como o resultado da mediação levada a efeito pelo Fausto[1] — não nos esqueçamos que, segundo Ernst Bloch (autor do livro O Espírito da Utopia), Fausto representa o próprio homo utopicus;

 

·         E, por último, como a completude e perspectivação Pátria do homo sebasticus/homo Imperialis/ Homo viator, entendido aqui como criador (em Viagem) do Império da Cultura.

 
 

 
Como temos vindo a defender, em Pessoa esta noção de viagem tem de ser entendida num duplo sentido: precisamente, de um obrar mitogenético e antropogónico, encarados, simultaneamente, a nivel individual e colectivo. Ou seja, de uma viagem consubstanciada na procura de um Eu fixo (Alberto Caeiro), mas que ultrapasse, por uma síntese às avessas, o eu desqualificado, o eu-vácuo, estilhaçado na excentricidade de ser-eu, em direcção a esse Eu lusocêntrico e atlântico em  que se atinge, como escreve na Mensagem, a conquista da

 

Distância —/ Do mar ou outra, mas que seja nossa!

 

Pois o mar é o tópos existencial a conquistar pela Consciência natural no seu trânsito até ao Saber Absoluto (Hegel).

 

            É no diálogo constante entre estas duas dimensões da viagem — uma de cariz orgânico e genético, construindo uma arquitectura genealógica assente no processo (dionisíaco/apolíneo) de individuação[2]; outra, de cariz transcendental, fundamentada colectivamente na edificação de um Império da Cultura — que se institui o projecto teleológico do paradigma utópico em Fernando Pessoa. Assim sendo, o conceito de utopia surge como paradigma de elevação a essa Consciência Suprema¸ pois é nela que arde a chama do tal Princípio de Esperança teorizado por Ernst Bloch, o qual actua por intermédio da função fantástica e da eufemização imaginária que, como escreve G. Durand,

 
 

 
é o espaço fantástico e as suas três qualidades de ocularidade, de profundidade, de ubiquidade de que depende a ambivalência, que é a forma a priori duma função cuja razão de ser é o eufemismo. A função fantástica é, assim, função de Esperança[3].

 
 

 
Neste caso, a esperança reside no facto de, com base nos deuses (e a pluralidade dos deuses equivale à multiplicidade de sentir «tudo de todas as maneiras» ), caracterizados como

 

Ideias humanas em passagem de noções concretas para ideias abstractas[4],

 
 

 
se conseguir atingir a transcendentalidade do si em Si Mesmo (Eu Superior). Como referiu Eduardo Lourenço, é isto que faz com que  Pessoa seja

 

um dos poetas-chave da Modernidade, se por isso entendemos a caoticidade intrínseca de um certo momento da história do Ser, a qual ainda, e talvez mais do que nunca, nos diz respeito.[5]

 
 

 
            É assim que, para se sair desta caoticidade pânica (e desta excentricidade de mim), há que (re)construir — a partir de todas as maneiras de sentir e da multiplicação da (sua) individualidade por todas as personalidades (=máscaras) — essa óptica matricial de uma Geometria do Abysmo, não por dispersão/separação (diaíresis), mas por síntese dialéctica, por harmonia discordante (Heraclito) de todos os elementos (individuais, atomísticos), numa grandiosa (pois que Imperial) molécula espiritual.[6]  Dentro desta perspectiva, o paradigma utópico assume-se como o ponto de fuga, o princípio organizador desta morfogénese cultural. Isto mesmo já foi referido por Jacinto do Prado Coelho quando escreveu:

 

Assim como há um Pessoa nocturno, anárquico, sem rumo, e um Pessoa diurno, racional, autovigiado (nisto imitando o seu admirador Antero[...]), assim transferido, em projecto utópico, para o plano colectivo o processo da heteronímia (...) se esboça um movimento centrífugo logo condicionado, corrigido, pela definição duma óptica no ponto de partida: não se trata de pura dispersão mas de síntese, o que implica um critério, um princípio de organização[7]

 

 

 

            Como nota, refira-se que os pilares desta nova atitude caracterizadora do que se poderia designar por Aurora da Modernidade já se encontram esboçados no pensamento do nosso Antero de Quental[8].

 

             Cruzando tudo isto verificamos, como corolário, que a génese hermenêutica do paradigma utópico se prende, quer com a criação demiúrgica do espaço arquetipal (por via do acto de escrita e, por isso mesmo, da linguagem — aliás, como se sabe, o escrever sobre a Escrita é o que melhor define a Modernidade); quer com o problema da reintegração eidética e noológica, isto é, com a irredutibilidade de uma topologia morfogenética (figurativa) no interior daquilo que é usualmete designado de  fenomenologia geral. É, pois, na linguagem que se institui o lugar de trânsito ou de mediação (daí o termos alertado, numa anterior investigação, para o outro sentido a dar à noção de «hermético» em Fernando Pessoa[9] e para a importância desse deus da comunicação) entre a mitopoiésis

 

[1] Não disse Pessoa algures que Portugal conquistou o mundo inteiro mas quase perdeu a sua alma? Ora, a Mensagem representa a (re)conquista dessa alma.

 

[2] Sobre este tema, ver o nosso ensaio O nascimento do homem em Pessoa: a heteronímia como jogo da demiurgia divina, Lisboa, Edições Cosmos, 1992, sobretudo o capítulo II.1.2. «O dionisismo do processo heteronímico: Pessoa à luz de Nietzsche», pp. 64-69.

                Sobre a relação de Pessoa com Nietzsche, ver Eduarlo Lourenço, «Nietzsche e Pessoa», in Marques (org.), Friedrich Nietzsche: Cem anos após o projecto ‘A Vontade de Poder-Transmutação de todos os valores’, Lisboa, Veja, 1989, pp.247-263. Sobre o conceito nietzschiano de individualidade, ver Nuno Nabais, «Indivíduo e individualidade em Nietzsche», in Análise, vol. 1, nº 2, Lisboa, G.E.C., 1984, pp. 119-157 (rep. No livro Metafísica do Trágico: Estudos sobre Nietzsche, Lisboa, Relógio d’Água, 1997, pp. 73-118.

 

[3] G. Durand, Les structures anthropologiques de  l’imaginaire,  Paris,  Bordas,  1969,  p. 480. Sobre este tema, ver ainda G. Durand, A imaginação simbólica, Lisboa, Arcádia, 1979, p. 89; Luís Garagalza, La interpretación de los símbolos: Hermeneutica y lenguaje en la filosofia actual, Barcelona, Ed. Anthopos,1990, pp. 68-69.

 

[4] Fernando Pessoa, P.I.A.I., Lisboa, Ática, pp. 304-313

 

[5] Eduardo Lourenço, Poesia e Metafísica, Lisboa, Sá da Costa, 1983, p. 166.

 

[6] Já tratámos destes conceitos de dialéctica e de diaíresis no nosso livro A consciência sacra, Sintra, Mar.Fim, 1987, pp. 51-59.

 

[7] Jacinto do Prado Coelho, Camões e Pessoa: Poetas da utopia, Lisboa, Europa América, s.d., p. 117.

 

[8] Cf. Antero de Quental, Tendências gerais da filosofia na Segunda metade do século XIX, pref. E notas de Leonel Ribeiro dos Santos, Lisboa, Ulmeiro, s.d., pp. 90-91. Sobre as relações de Pessoa com Antero, cf. Joel Serrão, Fernando Pessoa, cidadão do imaginário, Lisboa, Livros Horizonte, 1981; Id., «De Pessoa a Antero», in Actas do IIº Congresso internacional de estudos pessoanos, Porto, Centro de Estudos Pessoanos, 1985, pp. 531-546; e o nosso recente livro Pensar Pessoa: A dimensão filosófica e hermética da obra de Fernando Pessoa, Porto Lello & Irmão, col. «Mocho de Papel», 1997, sobretudo os ensaios «Pascoaes/Pessoa: A origem de uma divergência ou o ‘caminho-de-ferro’ da Saudade ao Transcendentalismo» (pp. 49-76) e «A Mensagem do Encoberto: Fernando Pessoa à luz do paradigma sebástico» (pp. 77-104).

 
 

[9] Ver o nosso ensaio «Ciência e Esoterismo em Fernando Pessoa», in Pensar Pessoa, pp. 167-192.

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